Moedas feitas de ouro puro de 24 quilates, de uma época em que o dinheiro era forjado com metais preciosos e que, ironicamente, voltam a ver a luz do dia em pleno século XXI, numa altura em que o dinheiro se tornou um pouco mais invisível, graças à evolução tecnológica e às circunstâncias dos últimos meses.
O encerramento de lojas, restaurantes e outros espaços comerciais durante os primeiros meses de combate à pandemia (provocada pela covid-19) levaram a população a recorrer ao comércio online para satisfazer as suas necessidades de consumo. Hábitos que perduram seis meses após o início do Grande Confinamento (meados de Março de 2020) e que justificam um aumento muito significativo das transações virtuais de dinheiro. Em Portugal, alguns estudos indicam que a pandemia gerou um crescimento do e-commerce entre 40 e 60% face aos valores de 2019, em particular em categorias como o retalho alimentar; também a SIBS anunciou que o valor médio das compras online aumentou aproximadamente 18% ao longo do período de estado de emergência, o que pode estar relacionado com o aumento da procura; em muitos outros países ocidentais este crescimento tem sido ainda mais acentuado…
Aos cartões de crédito e aplicações bancárias, que há muito permitem fazer pagamentos virtuais, juntaram-se agora novas formas de pagamento desenvolvidas por bancos e fintechs, que, desafiando o status quo, facilitam a movimentação de dinheiro e o pagamento de bens e serviços sempre com elevados padrões de segurança.
Todas estas novas soluções têm em comum o facto de tornarem o dinheiro físico invisível. Ele está lá sob a forma “binária”, mas deixa de nos pesar no bolso, não corre o risco de ser perdido, é mais difícil de ser roubado e oferece-nos possibilidades que outrora só podiam ser feitas junto ao balcão de uma agência bancária. Atualmente, com uma aplicação móvel, podemos fazer trocas cambiais em minutos e adquirir ações do outro lado do planeta, sem nunca tocarmos em dinheiro físico.
Outra das grandes vantagens desta nova realidade do dinheiro está relacionada com o controlo de circulação, que, para além de reduzir a chamada economia paralela, permite às autoridades financeiras e judiciais despistarem fluxos suspeitos, funcionando como elemento dissuasor de comportamentos ilícitos e como facilitador do funcionamento da justiça.
Se a isto juntarmos o dinheiro que é digital por natureza, como as criptomoedas, facilmente percebemos que estamos a assistir a uma mudança sem precedentes na forma como a sociedade transaciona bens e serviços e que antevê a retirada de circulação de dinheiro físico da sociedade, no tempo de vida desta geração, algo que já está a ser considerado por alguns países.
A retirada de circulação do dinheiro físico da sociedade afigura-se muito positiva do ponto de vista ambiental, na medida em que antevê uma redução da pegada de carbono do fluxo financeiro – deixa de ser necessário produzir, transportar e recolher numerário –, privilegia o comércio online, que segundo um estudo do MIT pode reduzir em 75% as emissões de carbono dos processos de compra e venda, mas também levanta questões de ordem da proteção de dados, no sentido em que uma sociedade cashless pode tornar-se uma comunidade voyeurista, vigiada, que corre o risco de ver as liberdades reduzidas e de assistir à ascensão de autoritarismos. Ao nível da União Europeia tem existido um caminho para a aceleração da soberania digital, que inclui o comércio online e os pagamentos sem dinheiro. Pese embora todas a normativas de proteção do consumidor e dados pessoais (GDPR), normativos de cibersegurança ou a diretiva de serviços de pagamento como o PSD2, este caminho implicará certamente um processo de transição demorado, que deve ser devidamente acautelado, para que os cidadãos possam usufruir na plenitude das vantagens que esta mudança de paradigma pode oferecer.
Bruno Saraiva, Diretor da área de banca da everis Portugal
[Texto originalmente publicado no Jornal de Negócios no dia 10 de setembro de 2020]